domingo, 20 de janeiro de 2008

Filosofia de Meia-Tigela

Tive a felicidade de conhecer esse narrdor de LARP de Vampiro: à Máscara e Idade das Trevas, antes mesmo dele entrar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo por volta do ano 2000 quando começaram os primeiros Live Actions do seu grupo Passargada. Com o passar do tempo, o seu pensamento sobre RPG foi madurecendo, como todos nos, mas segue aqui um exemplo perfeito de pelo menos sete anos de experiência, de alguem que nunca desistiu da nossa arte, mesmo adiante de uma faculdade tão estressante como a USP. Essa carta veio pela Lista de Discussão em OFF do Passargada no finalzinho de 2006, e demonstra claramente muitas das mesmas dificuldades que tivemos que superar em Mogi Guaçu durante as realizações Triunvirato; Unidos, venceremos:-)

"Eu queria não ter que me envolver nessa discussão mas vejo que será necessário antes que ela comece a tomar proporções indesejadas.

Esta mensagem não é para colocar "panos quentes", mas sim para trazer uma reflexão, e eu gostaria que os jogadores pensassem um pouco no assunto para ver se conseguimos mudar a postura de todos em relação ao live - a nossa e a de vocês.

Quando preparamos a história, ajudamos na montagem dos personagens, narramos as cenas - enfim, tocamos o Live para a frente - fazemos isso não para satisfazer nossas vontades de "controlar" o destino das coisas. Se fosse só esse o nosso objetivo, a gente escrevia um livro e publicava, que iria dar mais dinheiro.

O objetivo também não é combater a nossa baixa auto-estima (no caso dos narradores "bonzinhos" e "manipuláveis") nem satisfazer o nosso orgulho próprio (no caso dos narradores "malvados" e "manipuladores") (qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência). Se fosse esse, o Pasárgada seria um live em que os narradores têm personagens mega-fodônicos e ficam competindo entre si para ver quem joga melhor, enquanto a maioria dos jogadores são meros apêndices de um jogo muito menos articulado.

Ao invés disso, a gente sempre tentou montar um live, na qual o resultado final, é uma CONSTRUÇÃO, que é realizada EM CONJUNTO entre jogadores e narradores. Um Live Action é, desse ponto de vista (um ponto de vista bem filosófico), uma nova forma de criação, na qual o resultado final é produzido pela soma de todas as nossas mentes, e, portanto, é diferente de teatro, de literatura, etc. Para mim, além de ser um ótimo passatempo, também é quase uma nova forma de arte, a única que verdadeiramente supera as limitações da mentalidade individualista do ser humano (eu avisei que era filosófico).

Na nossa sociedade contemporânea, estamos muito acostumados a enxergar tudo a nossa volta como uma espécie de produto que pode ser comprado ou comercializado. Por isso, às vezes parece que, quando o jogador paga R$10,00 para jogar o live, que está contratando um serviço da Pasárgada Enterprises, mas não é isso. Esse dinheiro é só para cobrir os custos da própria realização do live, e francamente, se essa fosse a nossa fonte de renda, seria melhor arrumar outro emprego.

O Live é uma coisa que é construída em conjunto. É claro que nós, narradores, temos um papel diferenciado, porque cabe a nós arbitrar as situações, promover novas oportunidades de jogo, desenvolver o cenário, etc. Mas os verdadeiros protagonistas disso tudo são os jogadores, e não nós. Muitas vezes a gente nem se diverte com os personagens que interpretamos.

O nosso desafio é diferente do de vocês: o de vocês é um trabalho introspectivo, desenvolver a psiquê do personagem, pensar, respirar (ou não, já que somos vampiros né), agir e sentir como os personagens, e reagir como eles reagiriam às situações que enfrentam. O nosso é elaborar essas situações para vocês e encaminhar o jogo de uma maneira que seja, ao mesmo tempo, desafiadora e recompensatória. Se for desafiadora demais e recompensadora de menos, é difícil obter sucesso e logo se perde o interesse no jogo. Se for desafiadora de menos e recompensadora demais, fica tudo muito fácil e logo o jogo perde a graça. Mas também não é tão simples. Porque muitas vezes, para um jogador ter sucesso outro precisa falhar, etc, e por aí vai.

Por isso, nem sempre é fácil agradar a todo mundo, e diga-se de passagem, é impossível todo mundo ficar feliz ao mesmo tempo. Por isso dá claramente para entender que existam jogadores insatisfeitos.

O que não dá para entender é quando os jogadores começam a pensar que o live é uma coisa NÓS e ELES, que jogadores e narradores são inimigos, que os narradores fazem as coisas para te sacanear, que eles são filhos da puta, etc.

Se a gente aceita crítica? Depende.
Eu prefiro aceitar CONSELHO do que CRÍTICA. Parece um pouco imaturo né? Mas crítica é uma coisa que parte do princípio que você errou, e conselho parte do princípio de que você poderia ter feito melhor (mesmo tendo errado).
Às vezes, nós, narradores, também precisamos nos sentir motivados. O live, para acontecer, não depende só dos narradores motivarem os jogadores, mas os jogadores motivarem os narradores também, e eu já vir vários lives bons acabarem ou quase acabarem porque os narradores perderam a satisfação que tinham fazendo o live.

Agora, RECLAMAÇÃO, então, essa eu não gosto mesmo de receber. Porque reclamação é uma coisa que só acontece quando alguém tá devendo algo para alguém, e aqui nesse live ninguém deve nada para ninguém. Nem narradores nem jogadores. Ninguém tá prestando serviço aqui. Quando você está fazendo um trabalho em grupo na escola, pode haver debate, discussão, até briga. Mas ninguém têm mais ou menos obrigação de trabalhar direito, afinal é um trabalho em grupo.

Esse live é construído em conjunto, cada um dá quanto pode e recebe quanto precisa pra poder jogar. Tem gente com mais tempo livre, gente com menos, gente com mais experiência de jogo, gente com menos. Tem gente com carro que dá carona e gente que precisa ser buscado onde está para conseguir chegar. Tem gente que empresta o salão do prédio para que todos os outros possam jogar e tem gente que não tem dinheiro para pagar o live, mas mesmo assim sempre pôde jogar conosco. É assim que funciona, só dá certo se a coisa é feita em grupo.

Mas RECLAMAÇÃO OFENSIVA, ah, essa não dá pra engulir. Alguém aí já foi mau-educado com a mãe porque queimou o arroz? Ou com o filho porque foi mal na prova? A gente pode não gostar, mas somos um grupo e temos que nos tratar como um grupo.

Não pode ter NÓS e ELES aqui.

Se tiver, é o primeiro passo pro fim do live.

E sim, às vezes a gente também fica chateado, isso não é monopólio dos jogadores."

Alexandre Hepner
Head Storyteller do Pasárgada Live Action
São Paulo
www.pasargada-darkages.kit.net

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